quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A Experiência #3: Um (não tão) Pequeno Causo Literário



- Ei, você!
- Ã?
- Ei, olha pra mim! Eu sou bonito e atraente! Me leva pra casa?
- Ahn, olha... pessoa, você deve estar me confundindo com alguém. Alguém que veja você, por exemplo.
-Eu então!
-Eu quem?
- Eu sou mais bonito! Olha o meu título, ele é composto de apenas uma palavra, assim fica fácil pra você guardar!
- Mas o que...
- Não, não, me compra! Eu tenho uma foto de uma garota anoréxica olhando para o nada com a expressão de quem acabou de se drogar e está tentando se lembrar do nome das Sete Maravilhas do Mundo Moderno. É suuuuuuuuper cool!
- Eu sou melhor, eu tenho anjos caídos!
- Eu também! E vampiros!
- Eu também! E lobisomens!
 -Eu não, meus personagens são gente normal, mas eu digo que um cara com traços de sociopatia obcecado por uma mulher egoísta e covarde daria uma boa história de amor!
- Me poupe, você é igual a toda comédia romântica.
- Gente, gente! Chegou um novo!
- Ah coitado.
- Argh, ele é um daqueles que tem desenhos fofinhos na capa. Odeio desenhos fofinhos na capa. Especialmente melancias, chocolates e férias.
- O que vocês vão fazer com ele?
- Já viu um viciado em McDonald’s no meio de uma tribo canibal?

Pobrezinho. E ele parecia tão animado.

- Oi! Eu sou o mais novo livro de autoajuda que saiu, e estou aqui só pra te ajudar! Quer me comprar?
-RÁ! Na minha época livro de autoajuda tinha vergonha de se mostrar.
- É, precisa ter muita autoestima pra ler uma coisa que diz que você não tem inteligência, não sabe conquistar ninguém, não se encaixa nos padrões de beleza, não está no emprego que gosta, não sabe o que fazer pra mudar isso e ainda assim não se matar.
-Meu amigo, desista. Já inventaram um negócio muito melhor pra dizer o quanto a pessoa é imbecil.
-... É?
- Sim, se chama qualquer um. É meio inovador pra você, eu sei, mas  qualquer um que ler você vai perceber que é desajustado. Logo, você é totalmente inútil.
- É, no dia que aparecer alguém completamente bem-sucedido de acordo com qualquer livro de autoajuda, eu juro que me jogo no tanque de reciclagem.
- Pra fazer parte da nova tiragem de Crepúsculo? Hi, hi, hi...
- Gente, gente, pega leve. Olha novato, vou te dar um conselho: dá um jeito de ficar ali do lado daquele livro de capa com alguns tons de cinza. Cedo ou tarde quem compra aquilo vai precisar de você...
- Ei, eu ouvi isso!
- E daí? Vai bater na gente? Mas você não bate só em quem gosta de ser humilhado?
- Pelo menos eu estou na lista dos mais vendidos, há-há.
- Querida, até o Felipe Neto já falou mal de você. Isso é pior que o fundo do poço.
- Ei vamos humilhar uma publicação por vez, ok?

- Mas eu trago dez passos simples para...
- Resolver todos os problemas frutos de uma sociedade problemática? Solucionar os traumas psicológicos do leitor? Proporcionar uma resolução diferente do que qualquer coisa que dizem nas propagandas de camisinhas e absorventes por aí?
- Não dê ouvidos a ele, Freud – Uma biografia. É só um livro de autoajuda, deveria estar na seção “amadores”, para começo de conversa.

Um bate-estaca atravessou as estantes.
- Ai! Quer deixar a gente surdo?
- Olá! Eu acabo de trazer toda a vida e história do mais novo astro da música pop! Como ele não tem tanta história assim, eu uso a técnica da revista de fofoca: três páginas de fotos, um texto de dez linhas com letra tamanho dezesseis; três páginas de fotos... Você precisa de mim, você tem que ser fã de verdade do seu ídolo!
- O dia mais triste da vida desse cara foi quando o hamster dele morreu. Me poupe.
- Eu sou melhor, minha história é sobre uma menina, contada na primeira pessoa. Não é legal?
- A sua personagem é apenas uma projeção patética do que você gostaria de ser. A MINHA personagem pelo menos é uma super vampira com poderes sobrenaturais que tem que salvar o mundo da sua mestra maligna, e tem deuses antigos, lendas indígenas, rituais mágicos, dramas adolescentes e...
- É, ela tem que salvar o mundo, mas todo diálogo dela com alguém é sempre sobre o mais novo cara que ela conheceu e instantaneamente se apaixonou por ela. Inclusive ela mesma diz “O que não sai da minha cabeça e sempre me dá problema? Garotos, claro.” O que é a luta do Bem contra o Mal perto da possibilidade de dar uns amassos né?
- Não, EU sou melhor. Minha história é sobre uma menina, contada por um espírito. Não tem como ser superior a isso.
- Se você é um espírito, por que não se ocupa com coisas do tipo revelar o sentido da vida ou pra onde a gente vai quando morre, ao invés de contar histórias ruins que nem sucesso direito fazem?
- Ah, cala a boca. A sua personagem paga de mulher independente, mas assim que o namorado dá o fora nela ela fica suicida até outro homem vir em seu resgate, hahaha!

Eu até tentei falar alguma coisa, mas um livro com capa imponente gritou pra mim, com voz de bárbaro:
- E o que você acha de mim? Eu tenho uma boa história, mas faço parte de uma saga de vinte e sete livros. Você tem planos pro seu salário?
-Meu querido, hoje em dia é praticamente lei que você faça parte de uma saga de vinte e sete livros. Eu pelo menos sou interessante, peguei fatos históricos e os distorci até parecer que existe uma super conspiração mundial!
- Olha, se existe a lei de que haja uma saga de vinte e sete livros, no mínimo existe um acordo de cavalheiros de que sua história precisa de uma conspiração mundial. Ou universal, depende. Você trabalha com ETs?
- Você conseguiu um triângulo amoroso entre pelo menos quatro raças de monstros diferentes? Eu consegui. RÁ!
- E eu? Eu tenho um cara lindo e misterioso que surge de repente na vida de uma garota simples e aí...
- Me deixa adivinhar: ele é um ser que era um monstro terrível e sanguinário no antigo imaginário popular, mas por conta da modernização da literatura ele passa a ser charmoso e bonzinho?
- Se você disser que eles se apaixonam também, eu te jogo no triturador de papel.

Depois daquilo a discussão baixou o nível – alguém chamou a mãe de alguém de papel higiênico – e eu resolvi andar discretamente pela livraria procurando o que eu queria. Passava o olhar por todas as estantes, mas não me atrevia a pegar nenhum daqueles livros exaltados. Os religiosos tinham voz muito parecida com o Padre Marcelo, enquanto que a maioria dos infantis insistiam em dizer que vovô vê a uva; os biográficos liam solenemente trechos supostamente importantes (os autobiográficos tentavam ler mais alto e tinham um tom de arrogância que sempre desconfiei que tivessem) e a banca de revistas se dividia entre gritos japoneses, rangidos de carros e gemidos.
Até que eu o vi. Ele estava meio esquecido numa estante, sua lombada empoeirada indicando que ninguém passava por ali. Mas ele me olhou.
Não vou dizer que foi amor à primeira vista, porque não foi. Foi química, foi desejo. Me aproximei devagarinho. Sua lombada era deliciosa de ser tocada, sem aquelas baboseiras em alto relevo que tem aparecido por aí. Passei a mão por suas páginas. Quase salivei quando vi que não tinha sinopse na contra-capa. Um título simples, misterioso. O desenho na capa nada revelava. Nunca tinha ouvido falar do autor.
Como um desconhecido estava me seduzindo tanto assim?
Mas ainda tive dúvidas, nunca tinha feito isso. E se eu não gostasse? E se fosse ruim?
Ele então piscou pra mim. Seguro. Sedutor.
Atravessamos a livraria nos braços um do outro, ignorando os olhares e os gritos dos outros.
Paguei.
Fomos para minha casa.
 Fomos para o meu quarto.
Tivemos uma noite de leitura casual arrebatadora.
Pela manhã, ele havia sumido. Provavelmente estaria apenas debaixo da cama, mas foi pura e simples leitura casual.


Imbecis e sua mania de nunca perguntar o que a gente quer.